Protagonista e narradora de Hibisco roxo, a adolescente Kambili mostra como a religiosidade extremamente “branca” e católica de seu pai, Eugene, famoso industrial nigeriano, inferniza e destrói lentamente a vida de toda a família. O pavor de Eugene às tradições primitivas do povo nigeriano é tamanho que ele chega a rejeitar o pai, contador de histórias encantador, e a irmã, professora universitária esclarecida, temendo o inferno. Mas, apesar de sua clara violência e opressão, Eugene é benfeitor dos pobres e, estranhamente, apoia o jornal mais progressista do país.
Durante uma temporada na casa de sua tia, Kambili acaba se apaixonando por um padre que é obrigado a deixar a Nigéria, por falta de segurança e de perspectiva de futuro. Enquanto narra as aventuras e desventuras de Kambili e de sua família, o romance que mistura autobiografia e ficção, também apresenta um retrato contundente e original da Nigéria atual, traçando de forma sensível e surpreendente, um panorama social, político e religioso, mostrando os remanescentes invasivos da colonização tanto no próprio país, como, certamente, também no resto do continente.
Hibisco Roxo é o livro deste mês do clube do livro Entrelinhas. Quase nunca consigo fazer as resenhas em tempo hábil do encontro e hoje consegui! Esse é um livro que mudou meu pensamento em diversos graus, de muitas formas conversou intimamente comigo. Foi um experiência maravilhosa, mas não agradável. Dentre os livros da Chimamanda não é o meu favorito. Porém, merece todo o hype que recebe, só deixo uma mensagem desde o começo: leiam e tirem suas próprias conclusões.
O livro começa com uma quebra, e dali a gente retorna ao passado para entender como chegamos ali. Numa Nigéria muito colonizada vemos uma família tentando descobrir quem eram, quem são e quem serão. A verdade é que é uma história familiar de opressão, onde parte dos oprimidos sequer entende esse conceito, porque afinal, é amor o que eles ‘sentem’ uns pelos outros. É a história de uma nigeriana de 15 anos, mas poderia bem ser de uma carioca de 36.
“Há alguns meses, ele escreveu dizendo que não queria que eu ficasse procurando os porquês, pois há certas coisas que acontecem e para as quais não podemos formular um porquê, para as quais os porquês simplesmente não existem e para as quais, talvez, eles não sejam necessários.”
Bom, acho que um excelente ponto de partida é o fato da Nigéria não representar aquela ideia que a gente, cof eu, tem da África. Não são todos pobres e nem todos estão sofrendo dos mesmos problemas que vem na mente quando falamos deste continente. Dito isso, a família principal aqui é rica, e o dinheiro não é uma preocupação. Kambili é nossa principal protagonista, ela tem 15 anos e uma família que quando vista de longe é perfeita. Ela, seu irmão e seus pais são a excelente representação de que a vida deu certo, bom isso pelo menos quando se olha de fora. Mas, dentro das paredes da casa descobrimos uma família que está vivendo como refém de uma ditadura opressora dominada pelo pai que é controlado pela religião.
E é aqui que o brilhantismo deste livro começa, a dualidade do bem e do mal, do certo e do errado, da opressão e da liberdade. Quando a pessoa que comete uma atrocidade faz isso na melhor das intenções, ele é uma boa ou uma má pessoa? O pai de Kambili tem crenças cristãs muito fortes, e controla sua família com pulsos de aço para que eles não sejam pecadores, e se pecarem ele mesmo é o carrasco que executa a punição. Fora da casa ele é conhecido por ser um homem que é generoso com seu dinheiro ao ajudar os que precisam, é o representante carismático, aquele que luta pela justiça. Em casa ele ‘protege’ sua família com opressão da violência e os mantém na linha através do medo, é abuso psicológico e físico que chama. Não existe espaço dentro desta casa para ser feliz, para sorrir, para viver… apenas sobreviver almejando os céus. Eles devem cumprir com todas as expectativas irreais que seu pai fanático religioso tem, falhar não é uma opção… e se acontecer vai trazer punições físicas para os envolvidos.
“Com frequência fazíamos perguntas cujas respostas já sabíamos. Talvez fizéssemos isso para não precisarmos formular as outras perguntas, aquelas cujas respostas não queríamos saber.”
O pai nesse livro, Eugene, é uma figura que faz o mal achando que é o bem, que no fundo ele está salvando a sua família. Mas, ao mesmo tempo ele ultrapassa os limites do aceitável e é fácil odiá-lo pelo que faz e pelo que acredita. É só que ao saber da história dele o que eu mais sinto é pena, pena pelo que ele está fazendo com sua família e com ele mesmo. Ensinado do que é certo e errado ele se agarrou à isso de uma forma que, pro personagem, não existe outra opção além das escolhas que faz. Sabe, eu sou cristã e entendo muito bem esse conceito de arrependimento e punição, temos toda essa ideia do arrependimento que salva a sua alma, então eu consegui ver que ele queria salvar a família… Mas o que o pai não entendia é que com isso ele estava na verdade condenando os que queria salvar.
Tem uma cena no livro que ele executa uma punição na protagonista, o dia da menstruação, e ele chora junto na punição ‘eu não quero que você seja uma pecadora’. Entenderam? Ele realmente acredita que com isso está salvando a família, mas sendo sincera no fim das contas não importa a boa intenção. A verdade é que magoa, machuca e está destruindo completamente todos os que ele ‘deveria’ proteger.
E vamos falar da protagonista, Kambili, e do quanto eu sentia por ela e me identifiquei com ela. Ela amava, ou melhor, desejava ser amada tão intensamente pelo pai que não entendia que a vida que tinha era uma realidade composta de abusos. Ela estava sempre buscando pela aprovação, ela precisava da anuência de seu pai para ser feliz. Mas ela não era a prioridade dele, ela nunca seria. É doloroso ver isso, especialmente quando identifica muito de você na personagem. Toda a família parece viver numa bolha onde qualquer movimento brusco pode destruir todo o eixo familiar, não é permitido para nenhum deles ser quem eles são, eles devem ser a representação de uma família perfeita, fingindo tão intimamente até que um dia se torne quem são. Spoiler, não vai rolar.
“Os missionários brancos trouxeram seu deus para cá -disse Amaka.- Um deus da mesma cor que eles, adorado na língua deles, e empacotado nas caixas que eles fabricam. Agora que estamos levando esse deus de volta para eles, não devíamos pelo menos empacotá-lo em outra caixa?”
Então, os dois irmãos viajam para a casa da tia por razões de contexto político, um passo longe da opressão do pai que eles sequer sabiam estar vivendo. E a magia acontece, eles percebem que a vida não é só aquilo que eles viviam e conheciam como verdade absoluta. A crença de que aquilo que seu pai passava era a lei do mundo inteiro vai ruindo, e é aquilo né quando você sai da caverna não dá pra voltar e fingir que não viu o mundo do lado de fora.
Ifeoma, a tia, vai apresentando um mundo repleto de opções para Kambili e Jaja, e eles começam a adentrar mais em quem são do que em quem deveriam ser. E sob o olhar da Kambili ela vai amadurecendo, e sabe a magia dela? É que ela é como qualquer pessoa normal e que não acredita no seu valor. As palavras que eu queria ardentemente dizer pra Kambili, eu realmente também poderia dizer pra mim. A paixão por alguém que não pode amar meio que reforça a ideia de que ela queria o que não poderia ter, ela queria ser amada mas não se achava merecedora e no fim acabava inconscientemente fazendo escolhas que reafirmassem isso. Triste, né?
“O jokal Eugene tem de parar de fazer o trabalho de Deus. Deus é grande o suficiente para fazer seu próprio trabalho. Se Deus for julgar nosso pai por escolher o caminho de nossos ancestrais, então Ele que faça o julgamento, não Eugene.”
Tá, esse livro é ambíguo, amor não é só algo bom. Também é o motriz para violências insanas, mas tudo bem porque é o melhor para os que recebem. Com a crença de ‘salvador’, no fim está matando e destruindo de forma irreversível o alvo de seu amor. Tem uma crítica muito forte sobre o colonialista brutal que retira completamente a identidade do colonizado, retira de uma forma tão completa que ao pincelar sobre as crenças anteriores você não é digno de viver neste novo mundo. E no fim o oprimido se torna o maior aliado do opressor.
Vemos isso com o pai do Eugene, pela crença dele na religião natural da Nigéria ele perde o direito de fazer parte da família. Opiniões diferentes se tornam crimes, e com a segregação uma vontade fraca cai e toda uma cultura acaba. É, dá pra fazer um comparativo com diversas coisas na nossa vida né? Esse amor à tudo que é de fora, enquanto menospreza o que é da nossa cultura pode super ser aplicada aqui. Todos os nossos países de terceiro mundo que acreditam fielmente nisso precisam parar, pensar e entender que somos quem somos, e que isso é ótimo.
“– Os que estudaram vão embora, aqueles que têm potencial para consertar o que está errado. Eles deixam os fracos para trás. Os tiranos continuam reinando porque os fracos não conseguem resistir. Você não vê que é um círculo vicioso? Quem vai quebrar esse círculo?”
Vamos aos pontos que não foram tão bons no livro, se fala muito sobre tudo, mas não se aprofunda de forma completa em nenhum. Temos a agitação civil, o machismo, o fanatismo religioso, a síndrome de vira lata, o abuso familiar… no fim não dá tempo de trabalhar tudo. Além disso, o ritmo é bem lento, a história desenvolve mesmo no final e isso pode incomodar algumas pessoas, eu pessoalmente achei o ritmo gostosinho, mas já estou acostumada com esse estilo narrativo.
Outro ponto que pode ser ruim para algumas pessoas é a violência física e psicológica retratada, tem mutilação e violência real seguida de manipulação emocional que no final faz com que as vítimas amem e adorem o agressor. E o final do livro, bem o que dizer? Tem enormes furos e não foi recompensador. Sinceramente, eu gostaria de um outro final, mas não fui eu quem escrevi e, no mais, apreciei enormemente a jornada para desconsiderar o todo por uma parte apenas. É só que penso que deve ser lido com atenção pra não interpretar de forma errada alguns temas abordados no livro, não desvalidar todo um trabalho que já foi feito. Talvez, ao meu ver, aquela não tenha sido a melhor lição para resolver os problemas de abuso.
Gosto bastante da forma em que foram retratados os costumes, as comidas e a vida num local que pouco conhecia, a Nigéria no caso do livro. Eu li em ebook então a aparência física do livro não posso falar, mas achei a capa linda nas fotos que vi. Este é um livro necessário e que trás temas bem intensos numa realidade que podemos facilmente entender e nos identificar. Um livro sobre uma jornada, mas ao mesmo tempo sobre superação, sobre a fé que dias melhores virão. Eu gostei, apesar das ressalvas que disse. Acho que é um livro necessário, recomendo totalmente para pessoas maiores de 16 anos e que tenham maturidade para assimilar as violências retratas aqui. Chimamanda é maravilhosa, espero que ela possa continuar escrevendo esses livros maravilhosos. Eu com certeza estarei à postos para ler seus próximos livros!
eu li esse livro ano a passado e gostei, a Chimamanda é ótima com dualidades e extremos, bem como de trazer transcendência no caos. Eu li o físico, é lindo.
Oi Angel sua linda, tudo bem?
Eu sempre vejo elogios para essa autora, mas ainda não tenho nenhum livro dela. Eu acho o máximo o título dessa história e concordo com você, é um assunto que precisa ser discutido. A sociedade precisa se conscientizar para conseguir mudar. Adorei sua resenha!!!
beijinhos.
cila.
Olá, tudo bem? Acho que é a primeira vez que vejo falando sobre as ressalvas do livro, o que mostra que as pessoas tem perspectivas diferentes. Eu sempre quis conhecer essa leitura, mas ainda não tive oportunidade. Vou de coração aberto com todas as possibilidades que ela traz. Ótima resenha!
Beijos